Vamos partir daqui: todo conflito transforma uma história em outra, qual te transformou em artista?
Essa pergunta iniciou uma conversa que segue sem fim com uma das minhas melhores amigas: a Mari.
Mariana é designer, pintora, ilustradora e uma das mulheres com o tom de deboche mais afinado que conheço. Além disso, é completamente louca — como toda boa artista precisa ser. Apesar de todas as maluquices, se desenrola tão bem na vida que nem parece uma jovem de 25 anos.
Ela é uma das pessoas com quem eu mais converso sobre processos. Somos amigas de infância e nos reencontramos em um momento extremamente caótico para as duas — mas essa é história é para outro dia.
Hoje o papo é sobre arte, processos criativos e as razões para criar.
Manual para não desistir
A última atualização do GPT-4 colocou (outra vez) em pauta o papel da arte, do processo criativo e da autoria. Não pretendo entrar nos pormenores da polêmica, mas em tempos de I.A. como protagonista de muitos debates sobre arte, revisitar as razões pelas quais criamos é mais do que urgente.
O processo criativo sempre foi, de uma forma ou de outra, analógico — mesmo com a utilização de equipamentos digitais. Essa ferramenta muda, portanto, a forma como produzimos, consumimos e somos transformados pela arte. O ponto chave é: se existe a possibilidade de terceirizar o processo criativo em nome de velocidade e alcance, o que vamos fazer enquanto criadores para manter o desejo de criar ativo? Já que é tão simples criar, por que criar?
Por isso, o caminho para não desistir parte sempre do lugar mais óbvio de todos: nossa subjetividade.
Se até hoje foi a humanidade que deu tom para nossas criações é nela que moram todas as respostas. Continuar criando em tempos controversos é uma resistência — como sempre foi — e se existe algum papel definido para o artista é esse.
Então, nesse manual pocket para não desistir escrevo apenas uma regra: ouse sentir.
Nenhuma tecnologia sobrevive sem a nossa capacidade de expansão: da vida, das relações, do pensar e de tudo que isso movimenta.
E se a única forma de um criativo sobreviver é criando, que o façamos independente das ferramentas. O que não dá, de forma alguma, é ceder ao pessimismo. Todo artista é frustrado constantemente pelo processo e mesmo assim nunca desiste de criar, afinal é também — e apesar disso — um esperançoso convicto.
As respostas que você recebe dependem das perguntas que faz.
Thomas Khun.
O conflito que transformou a história
Grana.
Parece contraintuitivo mas a Mari começou a desenhar porque precisava de grana.
Tudo começa em um açougue. Paredes brancas, facas, sangue e o cheiro de carne no ar. A menina que fica no caixa “ajudando” os pais no ofício se distrai rabiscando papéis. Nenhuma novidade, só mais uma criança fazendo o que crianças fazem de melhor: inventar formas de caber no tempo que sobra.
Anos depois o açougue fecha e dali surge uma necessidade e uma ideia.
Mas como se a gente não desenha?
Essa foi a resposta da Mari pro Gabi, o irmão mais velho que sugeriu pintar camisetas para vender e, assim, juntar uma grana. A ideia chegou, sentou em um banquinho no inconsciente até ser chamada para a transformação: deixar de ser ideia e se tornar obra. Era domingo quando a Mari decidiu desenhar em uma camiseta pela primeira vez e, segundo ela: “ficou terrível, mas uma amiga gostou”.
Dali pra frente as pessoas conhecidas começaram a fazer encomendas.
O açougue não existia mais.
A menina do caixa também não.
O conflito que transformou a narrativa foi de ordem prática: dinheiro, dinheiro, vamos ganhe dinheiro (é ref. musical, link no final do texto).1
A artista da vida prática seria a narradora da história a partir de agora.
Mas eu arrisco dizer que não foi só a grana o mote desse conflito. Ela precisava da grana mas precisava mais ainda de uma fuga. A realidade naquele momento era cruel demais para um embate direto. De certa forma, ela sempre é — e talvez essa seja a razão do Miyazaki dizer “eu não consigo assistir a essa coisa e achá-la interessante. Quem cria essas coisas não têm ideia do que significa dor”.2
Quem já passou aperto financeiro sabe como é necessário criatividade para dar conta de encontrar novas formas de conseguir mais grana. É dolorido, desgastante e nenhum pouco bonito. O que me surpreende é como muitos criativos encontram caminhos para dar voz ao fazer artístico mesmo nesses momentos de muita falta. Não que eu ache que seja necessária a falta para existir arte, mas é muito interessante como ela aparece nesses contextos. A falta de grana fez a Mari pintar camisetas e pintar camisetas fez dela designer, ilustradora e pintora.
Quando ela me contou essa história, logo abriu um parênteses pra dizer que “primeiro foi uma fuga da realidade e depois uma forma de fazer dinheiro”. Algumas realidades nos direcionam diretamente para a fuga. Não há razões para ficar e se existe a possibilidade de fugir, por que não? E a fuga nem sempre é um caminho covarde. As vezes, fugir é o caminho mais corajoso e o único que abre perspectiva para criar uma nova realidade — e, para muita gente, essa realidade tem tinta, cor e encontra espaço para existir em uma tela.
Assim que ouvi esse trecho escrevi: “curioso isso porque meu lugar é muito mais de encontro. Eu escrevo pra me encontrar, não pra fugir.”
Para mim, a realidade em que estamos inseridos é extremamente evasiva. Os debates sobre criação e Inteligência Artificial são ótimos exemplos disso. Temos tantas imposições, poucas perguntas concretas, muitas respostas prontas e um descolamento gigantesco do que acontece de fato na vida da pessoas. Por isso, escrever é uma forma de encontrar respostas para essa irrealidade imposta como realidade.
São dois lugares de criação opostos e complementares.
Uma cria pra fugir.
Outra para se encontrar.
Independente da razão todo criador está fadado a persistir, enfrentar, negar ou reformular a realidade.
O fato é que não existe arte sem conflito.
PS: Ah, a Mari tem vários quadros belíssimos disponíveis. Conheça e acompanhe o trabalho dela clicando aqui 🙂
PS2: Se você gosta desses fragmentos considere se tornar um assinante.
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