muito além da performance
reflexões sobre a prática de esportes com equilíbrio, diversão e liberdade. #23 | 30 textos antes dos 30 |
Quem pratica esporte é maluco.
Seja por hobby ou profissionalmente, importa pouco o objetivo.
Colocar um tênis e ir até a academia puxar peso em uma máquina.
Colocar um tênis e ir pra rua correr, contando quilômetros pelo celular.
Estender um tapete e alongar o corpo, fazendo a respiração caber em cada movimento.
Colocar um tênis, capacete, luvas um short com almofada na bunda (para os desbundados), pegar um veículo pouco seguro de duas rodas e pedalar.
Subir em cima de uma madeira com quatro rodinhas e fazer manobras que podem te custar um — ou mais — dente.
Entrar no mar deitado em um pedaço de madeira para surfar.
Não importa a modalidade, todos os esportes pedem do praticante um grau de loucura. Mesmo que seja pela saúde física ou mental ou, ainda que seja pela estética — porque tem quem queira só ser gostoso e tá tudo bem, não faço juízo algum — é obrigatório um pouco de loucura. Podemos chamar de coragem, mas entro nesse mérito depois.
O exercício físico virou pra mim uma espécie de terapia. Na escola, eu era aquela criança que adorava as aulas de educação física. Jogava futsal, vôlei, basquete, dança, handball e pratiquei até xadrez. Nunca fui boa em nada. Na maioria das vezes era a última a ser escolhida para o time — peguem os lenços, lágrimas cairão — mas nem a rejeição me afastou do esporte. É óbvio que, enquanto criança, não pensava no aspecto psicológico, mas hoje sei que minha vontade de fazer era muito maior que a falta de acolhimento dos colegas.
Eu queria me mexer e, mais do que isso, queria fazer parte. O esporte nos insere em comunidades.
Quando cresci mantive o interesse de colocar meu corpo em movimento. Tive a fase skatista, a da yoga, a da academia, a do funcional, a da bike, do patins, do frescobol e agora encasquetei de fazer algo que sempre critiquei e comecei a correr. Calma, até hoje só corri umas quatro vezes, portanto ainda não faço parte da seita.
Ciclismo é o esporte que pratico há mais tempo. São 10 anos pedalando com frequência, considerando, é claro, os momentos de baixa, mas ainda é o esporte da minha vida. Acho, inclusive, muito engraçado chamar de ciclismo, porque, na realidade, eu só pedalo. Não tenho meta nenhuma além do movimento e da organização mental. Pego minha bike, coloco meu fone e saio rua afora disputando um espaço com os carros, pedestres e obras.
A prática de esportes ocupa um papel central na minha vida. Ela é uma parcela considerável da manutenção da minha saúde mental e sempre penso que meu grande objetivo é ser uma senhora que não sofre ao se abaixar para pegar uma panela. Exercício físico é minha droga para dar conta da atualidade. Faço pra não ficar mais maluca — apesar de saber que é coisa de maluco.
Mas ultimamente eu tenho notado um padrão de conversas sobre exercícios interessante. Muitas pessoas do meu círculo se preocupam com a quantidade de esporte que eu pratico. Não foi uma, nem duas, nem três vezes que encontraram formas educadas de me dizer: você está fazendo muito exercício e se cobrando performance.
Só tem um porém nessa história: eu nunca me cobrei performance. Eu quero os resultados mas não faço por eles. Não tenho metas, não tenho restrições. Eu só gosto de fazer. Não faço nem só porque quero ser gostosa — ainda que adore ver os músculos aparecendo em minhas costas.
Acontece que calhou de alguns dos meus hobbies serem esportes — e é claro que é sempre interessante diversificar, abrir as perspectivas e tal, mas eu naturalmente caio em atividades que envolvem o corpo porque foi assim que eu aprendi, na minha infância a me divertir. Eu me divirto pedalando, patinando, jogando frescobol, puxando peso. Através do esporte eu me percebo. Noto, inclusive, quando preciso descansar e quando minha cabeça não tá funcionando direito.
E eu acho a preocupação de todos muito interessante porque ela é baseada nessa cultura do culto ao corpo e à performance. Afinal, a prática de esportes virou essa coisa performática. É uma forma de dizer para o mundo que você é focado, disciplinado, que gosta de desafios e de correr riscos, que quer encontrar a “sua melhor versão” e toda essa bobajada — que adoece muita gente, inclusive os atletas profissionais de alta perfomance, e serve muito bem ao mercado.
Nada mais interessante para o consumo do que pessoas insatisfeitas com absolutamente tudo que fazem.
Lembra do que aconteceu em 2021 com a Simone Biles? A Simone é uma dessas atletas de alta performance profissional, campeã olímpica e mesmo com todo o acompanhamento necessário teve que escolher desistir da final em Tóquio para cuidar da saúde mental. Na época, a atleta disse:
"Eu não confio mais tanto em mim mesma. Talvez seja o fato de estar ficando mais velha. Não somos apenas atletas. Somos pessoas, afinal de contas, e às vezes é preciso dar um passo atrás”.1
O desabafo abriu espaço para um debate importante em cima do discurso “estude, enquanto eles dormem. Trabalhe, enquanto eles se divertem. Lute, enquanto eles descansam. Depois viva o que eles sempre sonharam.”
A Simone escolheu não ultrapassar certos limites — certíssima. Não é porque um limite existe que ele precisa ser cruzado e a crise da alta performance aparece exatamente nesse falta de sensibilidade para lidar com as subjetividades.
E o atleta carrega o título de herói porque vive diariamente toda a jornada narrativa de superação. É dever profissional dos atletas buscar sempre o melhor resultado. Mas querer sempre o melhor é extremamente exigente. Funciona muito bem nas histórias, mas por quantas vezes uma pessoa é capaz de superar a si mesmo em meio a tanta pressão sem entrar em colapso?
A coragem é o atributo basilar dos heróis e por isso também exige-se do atleta um bocado dela. Por haver necessidade, justificamos facilmente esse status. No entanto, muitas outras coisas que fazemos apenas por fazer também demandam coragem. Então, por que colocar tanto peso sobre isso?
Veja bem, eu sou do time do 1%. Acredito nisso e conhecer essa máxima me fez ser muito mais gentil comigo e com minha evolução em todos os aspectos da minha vida.
O que me incomoda é como o esporte virou vitrine.
Também me causa desconforto o discurso em tom de superioridade “olha, eu faço, você não faz, sou melhor do que você”. Instaurou-se uma cultura de competição cega no esporte, mesmo nesse feito por puro entretenimento e eu me pergunto sinceramente, pra quê? Não vejo necessidade.
E você pode dizer “ah, mas eu sou competitivo, isso me motiva, é assim que sou”. Pois então seja, em paz, eu defendo justamente isso. Mas esse discurso excessivamente performático e competitivo afasta as pessoas que querem praticar por praticar, sem a pressão de querer ser bom naquilo.
Eu faço uma série de esportes e sou ruim em todos. Me culpo, me cobro ou me sinto mal por isso? De maneira alguma. O esporte ocupa o espaço da brincadeira. É diversão, é estar na vida como uma criança. Obviamente envolve disciplina, obviamente me ensina sobre melhoria contínua e todas essas coisas, mas isso não é central, isso eu aprendi no caminho praticando só porque queria me mexer e conseguir ficar sentada em uma cadeira por mais de duas horas sem sentir dor na lombar.
O fato é que consigo entender exatamente de onde vem a preocupação mas eu desejo fortemente que todos consigam encontrar algum esporte para chamar de seu sem qualquer pressão em ser bom nisso. É inevitável melhorar no caminho e os desafios podem se tornar uma outra forma de diversão, mas não somos atletas de alta performance e não há necessidade alguma de se cobrar como tal.
Praticar esporte é uma forma de se manter consciente. Só mais uma delas. E essa pressão por performance leva as pessoas para o extremo oposto. Ouvi inúmeras vezes “eu não gosto de academia, por isso não faço nada”. Eu também não gostava, mas com o tempo mudei de percepção. Essa busca incessante pelo exercício como performance do eu superior também fecha a visão. Não é todo mundo que vai se adaptar à academia, mas sempre dá pra fazer uma caminhada, sabe?
As opções são inúmeras. Mas é fácil se perder e se comparar quando seguimos apenas o que recomenda o algoritmo. Tá tudo bem não querer fazer musculação ou correr. Dançar na frente da TV pode ser a melhor opção para você.
O que não dá é pra ficar parado.
Movimento é importante não só para os nossos desejos. O corpo físico também precisa.
Mas sem pressão, sem culpa, sem medo e sem essa necessidade de competição. Não precisa — só se você quiser, mas tem que ser mais divertido do que estressante e essa regra não pode ser quebrada.